sábado, 18 de julho de 2009

tanta inquietude num corpo flexível.

todo o movimento daquele ser inquieto, louco para arrebentar os moldes que pouco serviam para contê-lo. escandaloso, falava pelos cotovelos, pedia para massagiar-me a nuca, os pés, rodopiava e me levantava no ar, feito bailarino. e sentou ao meu lado, embalando um papo incoerente e desconexo, exatamente do jeito que fazia sentido pra nós dois e pra quase mais ninguém. e ali ficamos a tarde toda, alegremente. passou umas semanas e ele sumiu. não estranhei, fazia bem o tipo daqueles que gostam de rodar por aí, ignorando qualquer tipo de ordem, e algum dia voltar sem explicações. elas não faziam falta. numa tarde entediosa, onde meus companheiros esgoelavam-se para ver quem gritava mais alto, eu tava de saco cheio e fui tomar um café ali perto com uma amiga. a mais linda por sinal. cabelos cacheados, pele branca e belos seios. quase um fogaréu ambulante. mais linda ainda era quando fumávamos e ela tentava me explicar filosofia, com aqueles olhos vidrados em mim, a boca entreaberta e palavras arrastadas. mas enfim, ela não é o caso. ainda. o caso é que ele estava lá, jogado, sozinho, com o corpo envergado e dormindo. minha amiga tentou acorda-lo - nada. levantou-lhe a cabeça, mas ele não acordou e quando sua mão desapoiou sua face, ele novamente caiu. eu tentei acorda-lo. acariciei-lhe os cabelos curtos, as costas... levantei-lhe a face na direção da minha e pedi para que acordasse:
- acorda, por favor. assim você nos deixa triste.
dei-lhe uns tapinhas na cara, bem de leve. ele acordou. e olhou para mim. aqueles olhos verdes estavam desesperados. silenciosamente pedindo socorro. provavelmente ali, a tarde toda e ninguém ouviu. esses surdos. eu à flor da pele como de costume me assustei.
- o que houve com você, por que tá aqui sozinho, quer ajuda? eu pego algo pra você. mas fica bem. por favor.
abriu a boca. tinha um cheiro insuportável de álcool. não conseguia pronunciar uma palavra, mas me deu um ligeiro sorriso e voltou a cair, com a cabeça nos joelhos. aquele ser inquieto. pouco o conheci. mas a desordem nos nossos olhares se reconheceram de primeira. acho que tenho esse dom.
dei-lhe um abraço e parti com minha amiga. ela já o conhecia há uns anos e às vezes se beijavam por aí. faziam um atraente par para mim. a gente foi fumar e sempre aquele papo incendiário de deus, natureza, pensamento e cultura. e muita loucura. um assédio só. até que ele voltou. nos contou que tinha participado de algo que envolvia muito álcool e poesia e por isso estava naquele estado. sentou ao meu lado e me disse que eu era a pessoa mais linda que ele já tinha conhecido. que não era possível haver tanta bondade e identidade em um olhar e que ele me amava como irmã e queria minha companhia sempre e que eu não poderia sumir dali. eu tava numa fase estranha, de transição, de saco cheio de todo esse falatório dividido em castas e não queria saber de muita coisa além de andar de uma lado para outro. sai com ele e com uns amigos para tomar cerveja no dia seguinte. ele me contava que as pessoas tinham que libertar o Leão que tinha dentro delas: graaaww. e a gente andou por aí, repetindo isso aos cantos, ninguém nos levava a sério e sabíamos disso. mas não importava, quem falava eram nossos leões. a gente sentou em roda e ele, em perna de índio, tirou um caderno da bolsa. parecia uma criança. me mostrou uns desenhos incríveis. eu fiquei de boca aberta. eram mesmo impressionantemente expressivos. eu sentia eles tatuarem a minha pele. vários rostos. inúmeros rostos. anotou meu e-mail com um giz de cera. e sumiu. nunca me mandou um e-mail. nunca mais apareceu por onde costumava aparecer. parecia assustado também. aquela figura era única. concentrava tantos dentro dele, eu queria conhecer todos. passaram-se umas semanas e ele apareceu numa festa que eu estava. me olhou de primeira com vergonha, sabia que seu Leão muito tinha me contado. mas também sabia da identidade de nossos olhares e se aproximou, disse que era bom me ver. depois disso, a gente se cruza em algumas festas ou em alguns corredores por aí. sempre é bom vê-lo bem. ele tá quase casado, com uma mulher de aparência forte. a desordem presente na gente sempre se atrai. e arranca sorrisos um do outro. basta para nos comunicarmos.
para mim ele é um ponto de interrogação e muitos de exclamação. em poucas vezes, muitos seres manifestos naquele corpo flexível. todos esses seres se identificavam na inquietude louca de romper tudo quanto era moldura que ousasse nos prender.

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